A PRÓPOSITO DA ANENCEFALIA
DR. CLAÚDIO FONTELES
Motiva-me ao presente escrito, o parecer da Dra.
Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira sobre o tema encaminhado ao Supremo
Tribunal Federal.
A idéia central está em que: “A maior parte dos
fetos anencéfalos morre durante a gestação. Aqueles que não falecem durante a
gravidez têm curtíssima sobrevida, de natureza meramente vegetativa, em geral
de poucos minutos, ou horas.” ( parecer: item 22).
Eis raciocínio totalmente inconciliável com o
princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana ( art. 5º, caput).
Com efeito, ser a vida humana inviolável, direito
pessoal individualmente garantido, conduz-nos à necessária conclusão de que o
tempo de duração da vida humana – se 3 segundos, 3 minutos, 3 horas, 3 dias, 3
semanas, 3 meses, 3 anos… – não é fator decisivo para a sua eliminação
consentida.
À vida humana, gestada ou nascida, garante-se sua
inviolabilidade, impedindo-se sua morte, insisto, por simples projeção do
decurso temporal.
O juízo, sempre temerário, sobre o tempo de
duração da vida humana não chancela seja liquidada. Assim viola-se,
arbitrariamente, o que a Constituição federal quer inviolável.
Diz, passo adiante, a Dra. Deborah: “34. O
reconhecimento da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera
de autodeterminação de cada mulher ou homem, que tem o poder de tomar decisões
fundamentais sobre suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas,
sem interferências do Estado ou de terceiros.”
Est modus in rebus.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana não é o apanágio do individualismo, do egocentrismo, da absoluta
supremacia do eu, como o texto reproduzido indica.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana se resguarda a autodeterminação de cada mulher e de cada homem, até
porque nós todos, mulheres e homens, desde a concepção somos em contínuo e
incessante auto-movimento nos ciclos que compõem a nossa vida, necessariamente
embrionário, a que se inicie, e depois fetal, recém-nascido, criança, jovem,
adulto e velho, se nos é dado viver todos os ciclos, tanto resguarda não para
que nos enclausuremos, repito, na solidão egocêntrica, eis que somos seres
vocacionados, porque também ínsita em nossa dimensão, a sociabilidade, portanto
o princípio da dignidade da pessoa humana promove-a como ser social, e disso é
expressão eloquente o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal a preceituar
que: Art. 3º – “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I – construir uma sociedade justa, livre e solidária”.
Portanto, se vida há que se auto-movimenta no
corpo materno, com ou sem deformações, mas se auto-movimenta, e vive, então como
matá-la, por perspectiva meramente cronológica de sua existência?
Tal morte conduz-nos ao primado do egocentrismo,
entortando a compreensão jurídica do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, que não se compraz com a absolutização do arbítrio.
Diz, ainda, a Dra. Deborah: “É dentro do corpo das
mulheres que os fetos são gestados, e, mesmo com todas as mudanças que o mundo
contemporâneo tem vivenciado, é ainda sobre as mães que recai o maior peso na
criação dos filhos,” ( item 36 do parecer ).
O argumento não deixa de estampar discriminação.
O homem, o pai, não mencionado, não conta.
Decisão sobre a manutenção da gestação não
envolve, tout court, a ideia de autonomia reprodutiva só pertinente à
mulher-mãe, como expressão, no dizer da Dra. Deborah, dos “direitos
fundamentais à liberdade e à privacidade”.
Pelo fato, óbvio, dos fetos serem gestados “dentro
do corpo da mulher” não se pode absolutizar, na mulher, o juízo, único e
exclusivo, sobre a permanência da gestação, descartada a manifestação de
vontade do homem-pai.
Tal ilação é tão absurda quanto o é a ideia de
Ronald Dworkin, que a Dra. Deborah reproduz nesses termos: “… uma mulher que
seja forçada pela sua comunidade a carregar um feto que ela não deseja não tem
mais o controle sobre seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos
que ela não compartilha. Isto é uma escravidão parcial, uma privação de
liberdade.” ( transcrição no parecer, no item 38 ).
“Escravidão parcial” é tão inapropriada, porque ou
se é escravo, ou se é livre, não existe o meio-escravo, quanto inapropriado é
matar a vida que se auto-movimenta e se auto-desenvolve no ventre materno, que
a acolhe, pela liberdade pontual e arbitrária da mulher-mãe em desacolhê-la.
Afirma a Dra. Deborah: “Entendo que a ordem
constitucional também proporciona proteção à vida potencial do feto – embora
não tão intensa quanto a tutela da vida após o nascimento – que deve ser
ponderada com os direitos humanos das gestantes para o correto equacionamento
das questões complexas que envolvem o aborto.” ( item 41 do parecer ).
Com todo o respeito, o princípio da dignidade da
pessoa humana, assim como o da inviolabilidade da vida humana, ambos contemplam
a vida e a pessoa humanas em todos os seus ciclos, desde o momento-embrião até
o momento-ancião, se os ciclos cumprem-se normalmente, como já o disse antes,
não fazendo o menor sentido atribuir-se
a tal, ou qual, ciclo maior, ou menor, proteção constitucional.
Não existe meia-vida como não existe
meia-gravidez…
Portanto, falar-se em “tutela progressiva” da vida
humana é percorrer argumentação cabalmente despropositada.
A Dra. Deborah conforta-se, nessa linha de
argumentação, a dizer que: “Contudo, quando não há qualquer possibilidade de
vida extra-uterina, como ocorre na anencefalia, nada justifica do ponto de
vista dos interesses constitucionais envolvidos, uma restrição tão intensa ao
direito à liberdade e à autonomia reprodutiva da mulher.” ( item 42 do parecer
).
Aqui, tem-se diante petição de princípio,
inadequada ao debate jurídico, que pede a exposição concatenada de concretos
fundamentos ao amplo exame da controvérsia, do mesmo modo que em nova petição
de princípio a Dra. Deborah sentencia que: “Nas audiências públicas realizadas
nesta ação foi devidamente esclarecido o fato de que a menina Marcela de Jesus,
que teria supostamente sobrevivido por um ano e oito meses com anencefalia não
tinha na verdade esta patologia, ao contrário do que afirmaram os opositores da
interrupção voluntária da gravidez, mas outra má-formação cerebral menos
severa, ainda que também de caráter fatal” ( item 23 do parecer ).
Ora, e com todo o respeito à Dra. Deborah, Marcela
de Jesus, é fato certo, inequívoco, e não “supostamente”. Viveu mesmo 1 ano e 8
meses, e sua morte não decorreu da anencefalia. Quais as razões apresentadas na
audiência pública a dizer que o quadro de Marcela não era de anencefalia? O
parecer da Dra. Deborah é omisso, e nada demonstra, como deveria, no tópico. E,
como mesmo diz a Dra. Deborah, se essa “má-formação cerebral menos severa,
ainda que também de caráter fatal” acontece, então havemos de concluir que o
aborto, ou a antecipação terapêutica do parto, como se queira eufemisticamente
chamar, também, assim, é chancelado em homenagem à dignidade da pessoa da
mulher-mãe…
Por derradeiro, a Dra. Deborah afirma que: “Por
outro lado, também ficou patenteado nos autos que inexiste possibilidade real
de transplante dos órgãos dos fetos anencéfalos para terceiros, uma vez que há,
com grande freqüência, outras malformações associadas à anencefalia” ( item 24
do parecer ).
Todavia, a Portaria nº 487, de 2 de março de 2007,
do Ministério da Saúde, dispõe exclusivamente “sobre a remoção de órgãos e/ou
tecidos do neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento” e, em seu
artigo 1º é textual no assentar que: “A retirada de órgãos e/ou tecidos de
neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida
de diagnóstico de parada cardíaca.”
Como manter-se a afirmação da Dra. Deborah de que
“inexiste possibilidade real de transplante de órgãos dos fetos anencéfalos”?
Na verdade, e sempre com o respeito merecido, a
argumentação da Dra. Deborah, e de todos os que querem legalizar a morte do
feto, ou do bebê, anencéfalo não tem base jurídica.
A Constituição brasileira de 1988, significando a
resposta democrática ao sombrio período do arbítrio e do menosprezo à vida
humana, foi enfática e textual – e assim aqui torno a mencionar o artigo 1º,
inciso III – no marcar para todas e todos, brasileiras e brasileiros,
estrangeiras e estrangeiros, que aqui vivam, como objetivo fundamental da
República federativa, a diuturna construção de sociedade justa, livre e
solidária.
Aqui, tenho por caracterizado o que o professor
associado de instituições de direito público da Universidade de Milão-Biccoca,
Filippo Pizzolato, denomina de personalismo constitucional, que nada tem a ver
com o protagonismo do ser individual. Conheçamos o que diz o professor
Pizzolato:
“Do modelo individualista, que nossos
constituintes refutam numa versão ideal-típica, parece se contestar a própria
matriz, cuja origem pode facilmente ser encontrada no direito natural
iluminista e no contratualismo liberal a ele correlacionado ( de Hobbes, Locke,
Rousseau, entre outros). O pressuposto cultural e antropológico dessa tradição
iluminista pode remontar, porém, ao cogito cartesiano, quer dizer, à idéia de
autopercepção do sujeito como indivíduo, alguém que constrói para si uma
identidade prescindindo dos outros e de um tecido de relações. Por trás de tudo
isso, portanto, está a idéia de indivíduo, anteriormente desconhecida, como
entidade originária, enquanto tal titular de um feixe de direitos naturais cuja
consistência precede a própria idéia de sociedade. Nessa perspectiva, a
sociedade é apenas o fruto posterior e eventual de um livre ato de vontade ( um
contrato ) estipulado entre indivíduos, todos livres, independentes e iguais.
Os direitos naturais gozam, assim, de uma fundamentação autônoma, completamente
racionalista e abstrata e, enquanto tal, logicamente anterior ao próprio
fenômeno jurídico, que, por sua vez, é propriamente social e, por conseguinte,
voluntarista. Por mais paradoxal que possa parecer, na teoria do direito
natural individualista, os direitos ( naturais ) vêm antes da sociedade e,
assim, assumem uma vocação absolutista, com pequena tolerância para as
necessárias limitações ou mediações que as relações sociais tornam
inevitáveis.” ( in – O Princípio Esquecido – coletânea de artigos organizada
por Antônio Maria Baggio – editora
Cidade Nova – pg. 116-17- no artigo: A fraternidade no ordenamento jurídico
italiano de autoria do citado Prof. Filippo Pizzolato).
O personalismo constitucional, por sua vez,
sustenta que: “ Pertencer a uma comunidade é constitutivo e estrutural da
identidade humana, não um dado acessório ou opção eventual voluntarista” (
artigo citado – pg. 118 ) porque “ … antes do indivíduo existe necessariamente
uma comunidade, entendida como rede de relacionamentos, tecido de relações, quadro
de solidariedade que sustenta o próprio indivíduo e permite o seu
desenvolvimento,” ( ainda: pg. 118 ).
E arremata o prof. Pizzolato:
“Essa dimensão horizontal da solidariedade, já
reconhecida, em que a fraternidade encontra um espaço destacado, não pode ser
reduzida ao cânon, tipicamente liberal, do não prejudicar aos outros, mas
encaminha e orienta o próprio exercício da liberdade, seguindo o mandato bem
mais vinculativo do faça o bem ao outro ( … porque é também o seu).” ( pg. 120
).
Nessas colocações, reconhecido fica o pensamento
do filósofo Emmanuel Mounier, assim tão eloqüente:
“Trato o outro como um objeto quando o trato como
ausente, como um repertório de informações, que me podem ser úteis (G. Marcel ) ou como instrumento à minha
disposição; quando o classifico definitivamente, isto é, para empregarmos exata
expressão, quando desespero dele. Tratá-lo como sujeito, como ser presente, é
reconhecer que não o posso definir, nem classificar, que ele é inesgotável,
pleno de esperanças, esperanças de que só ele dispõe; é acreditar. Desesperar
de alguém é desesperá-lo… O ato de amor é a mais forte certeza do homem, o
cogito existencial irrefutável: amo, logo o ser é, e a vida vale ( a pena ser
vivida). ( in- O Personalismo, pg. 48-9 , Centauro editora.).
O bebê anencéfalo ser é.
Dr. Cláudio Fonteles
Fonte: Canção Nova (11/4/2012)
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